segunda-feira, 22 de junho de 2009

Intertextualidades


Por Ellen Hardy

Incomoda-me o tanto que temos discutido sobre a presença ou não de intertextualidades nos textos. Para mim é vão, pois eu vejo intertextualidades em todos eles, sejam elas intencionais do autor ou não, percebidas ou não pelo leitor, de forma consciente ou não.

Às vezes elas são extremamente explícitas, como nos trabalhos dos DJs, que usam trechos de obras alheias sem o menor pudor e criam combinações, essas sim de sua autoria, verdadeiras saladas de trechos de músicas, capazes até de ficar mais bonitas que as originais... aos ouvidos de seu público. Outras vezes são mais sutis, como em meu texto do exercício: “Vou-me embora pro passado”, apesar de não ser a mesma frase, seu som parecido e a presença no início do texto, remetem o leitor para a poesia de Manoel Bandeira. Desde que ele a conheça.

É claro que pode acontecer de, ao ler o mesmo texto, alguém ver intertextualidades que eu não percebo, ou o contrário, não enxergar aquelas que para mim são evidentes.
Li numa entrevista de um jovem comediante: “Sei que minha comédia não é para todo o público. Já fiz show para (...) uma galera chão-de-fábrica que não achou a menor graça no meu trabalho (...) Se a pessoa não tiver referência, não vai achar a menor graça no meu espetáculo. Precisa saber quem são, por exemplo, os personagens que trago ou as vivências de que falo.” Taí: se quiser que suas intertextualidades intencionais sejam percebidas e apreciadas, o autor tem que escolher referências que seus leitores conheçam.

Digo intencionais pois vejo que, além das intertextualidades aplicadas propositadamente pelo autor, sempre haverá aquelas inseridas inocentemente, sem que ele mesmo se dê conta. Pois veja, a rigor, até mesmo o idioma usado no texto é uma forma de intertextualidade. Sim, pois se trata de uma referência cultural que só será percebida se o leitor tiver essa referência, ou seja, souber interpretar aquela língua ou pelo menos reconhecê-la.

Eu, por exemplo, não entendo nada dos letreiros das lojas nas ruas da Liberdade, que intuo que estejam em japonês, mas bem poderiam ser em coreano ou chinês e eu nem me daria conta da diferença. Minha vivência apenas permite que eu reconheça que se trata de escritos em língua do extremo oriente; essa é a única intertextualidade que sou capaz de captar, tanto que se alguém imitar a linguagem visual sem significado nenhum, nem vou perceber!

Outra coisa eu percebo naqueles dizeres para mim misteriosos: considerando-se que estão no centro de São Paulo, é evidente que estão dirigidos a uma parcela bem específica do público, à qual não pertenço. Essas são intertextualidades propositalmente inseridas para limitar a leitura a um público definido e excluir as demais pessoas que com elas se depararem; intertextualidades exclusivas, que excluem parcelas indesejadas do público. Como se o tal comediante provocasse propositadamente a sensação de excluído cultural à “galera chão-de-fábrica”.

Às vezes a gente não entende o significado do texto, mas reconhece sim sua intertextualidade, ou pelo menos parte dela. É só pegar uma estrada qualquer no Brasil para notar o uso de palavras indígenas para nomear cidades, rios, morros e estradas. Mesmo dentro da cidade, ruas emprestam seus nomes indígenas ao ponto de táxi, à banca de jornais e à padaria. Eu não sei o significado de quase nenhuma delas; mesmo assim reconheço pela sonoridade que são indígenas do Brasil.

Considerando o exposto, atrevo-me a definir que intertextualidades é o conjunto de referências aplicadas na construção e/ou na interpretação de um texto. Então elas estão presentes sempre, em qualquer texto. No texto literário, por exemplo, o autor tem que usar, no mínimo, suas próprias referências culturais de idioma e de alfabetização. Por isso ouso afirmar que, sem intertextualidades, o texto não existe.

Olhos que não vêem, coração que não sente. Se por um lado a intertextualidade intencional inserida pelo autor somente será apreciada por quem conhecer o referencial adotado, mesmo que “não lembre de onde já viu antes”, por outro lado a obra nunca será imune a referências desavisadas a outras leituras pessoais do leitor. Isso porque a bagagem cultural do leitor promove uma interpretação única: a percepção de uma combinação estritamente pessoal de referências, que independe das intenções do autor. Sim, pois também o leitor pode ter referências culturais desconhecidas pelo autor, o que o faz perceber intertextualidades desavisadas, que o autor nem sequer sonharia. “Olhos que não vêem, coração que não sente”, e esses olhos também são do autor: uma vez publicada, a obra ganha vida própria à revelia do autor, como um Frankenstein. A cada novo leitor, e a cada novo momento do mesmo leitor, cria-se uma nova vida relacionada a sua história pessoal. Isso acontece pelas diferenças entre as vivências culturais do autor e do leitor, e se intensifica quando há inversão da linha do tempo.

Finalizo colocando essa interessante peculiaridade das intertextualidades. A linha do tempo do autor é diferente da do leitor. Explico: o autor segue a linha do tempo da história da humanidade, pois somente poderá utilizar referências criadas antes do momento de criação do seu texto. Mas a linha do tempo do leitor segue a das experiências vividas ao longo da sua vida, ou seja, ele poderá também perceber referenciais que só passaram a existir depois na História, mas antes na sua história pessoal. Para o leitor os referencias não precisam ter sido criados antes do texto, apenas precisam ter aparecido antes na sua vida. Um exemplo: o jovem fã de Guerra nas Estrelas vai conhecer as chaminés da La Pedrera de Gaudí e numa primeira reação impulsiva pensa que são inspiradas nos soldados do filme, que foi lançado 65 anos depois. É o mesmo que dizer que o pai é a cara do filho... verdade, ele é mesmo, sem importar quem veio primeiro ao mundo, mas apenas quem chegou primeiro à vida do leitor.

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