sexta-feira, 26 de junho de 2009

ANTROPOFAGIA

Por Fabiana Turci


- Que somos seres miméticos, ele me disse, tocando nos meus cabelos, como quem abandonasse. Pensei nas mãos, enquanto o cabelo ia se transformando em todos os cabelos de todas as mulheres que construíram aquele toque. Retruquei, ríspida, desesperada, que, chega um tempo, em que se é. “Se é o que?”, ele perguntou. Não o que: simplesmente, se é. O que se seguiu foi um caminho em que ele me dizia não haver autenticidade em nós, que somos constituídos por fluxos discursivos de tantos outrens. Ao que eu dizia não ser uma questão de individuação, de afirmar uma posição central de sujeito que não mais se sustenta: mas que era como a possibilidade do olhar, que escolhe, colhe e se apropria.
- Quando tivermos um filho, e ele, de repente, balbuciar o teu nome, você vai me dar razão.
O filho, pelo simples desejo, ia crescendo dentro de mim. Eu disse que era muito difícil conversar, agora, que a vida inteira tinha sido de versos e monólogos. E que, então, eu tinha vontade de citar Camille, Clarice, Ana, Hilda, Anais, e ele ia me acusar de inautêntica, e ia me colocar culpa de vampiro.
Ficamos no silêncio, sendo. Depois de tempo enorme, mastigado com chiclets, eu disse que aquilo não era imitação de um instante. Entre a sombra e o braço, ele concordou.

II.
Escrevi duas linhas num guardanapo amassado, depois de nove meses gestando as palavras. Reli, limpei os cantos da boca: vontade nenhuma de abdicar do verso. Fiz sopa de legumes com as letras dos poetas – só os mais íntimos - e ofereci a ele, como argumento. Perguntei, com falsa inocência, se eu engolisse o mundo, ele seria meu?

III.
Ele me mostrou um poema que escreveu em 1991, retirado do silêncio das pedras. Eu disse que gostava daquilo, que me lembrava manoelzinho, a quem tanto amo. Mas, num ato de súbita coragem, perguntei do que era feita a matéria das palavras. “Da ausência”, ele respondeu, tímido, seguro. É claro, é mais presente em nós o que nos falta. Mas, diga-me: ausência de que? Não de que: ausência. Não quis perguntar quem era a mulher para quem ele havia dedicado o poema antigo. Como se me lesse, ele disse, para se constar, que a tal Helena era a diretora da peça do teatro que serviu de centelha. Eu disse que Helena, a outra, tinha sido a primeira mulher que, aos cinco anos, eu afirmei ter vontade de ser.
- Mas agora você está contente em ser você?
Quando aprendi a ler, mastiguei Helena inteira. E agora, sou.

IV.
- Quando propuseram, em 1998, fazer uma Bienal sobre Antropofagia, acho que o Paulo pensou na incorporação dos valores do outro para construir os seus próprios. Mas sabe o que aconteceu? As pessoas, digo, os artistas, deram um cunho regionalista, pensando numa relação com canibalismo, e associando-o aos mitos e a formas sociais locais.
- Mas ninguém falou nada?
- Falar, acho que falou... Mas, e daí?
- E daí que alguém, algum crítico, alguém poderia ter falado de Montaigne.
- Poder, poderia. Mas não ia adiantar de nada. Mire veja: quando a coisa é tematizada, perde-se a perspectiva.
- ???
- Assim: na última Bienal, por exemplo, uma mulher pegou a obra do Camus e desconstruiu inteira, 32 mil palavras, e fez quadrinhos em ordem alfabética.
- Qual livro?
- Não importa... O Estrangeiro. Mas ninguém falou em antropofagia, e ficou todomundo sem entender nada.
- Falaram do existencialismo?
- Sim, sim: do existencialismo. Ninguém entendeu nada.

Um comentário:

  1. Fabiana: nós, escreviventes, ficamos encantados com sua sensibilidade, seu estilo que é profundo e flutua ao mesmo tempo, e com seu envolvimento com a escrita e a leitura.
    Saúde e um futuro brilhante!
    KK

    ResponderExcluir