domingo, 14 de março de 2010

exemplos de crônicas produzidas entre março/abril 2010

Flashback no metrô (2)

“Próxima estação: Anhangabaú”. O anúncio no metrô me transporta para uma tarde de 1960.

Depois do lanche no salão de chá, saímos do Mappin e olho com encantamento para o Teatro Municipal. É lá que vou aprender a ser bailarina, penso, e vou fazer parte do corpo de baile. Mas mamãe já me arrasta para o Viaduto do Chá e, como sempre, aponta para o Edifício Matarazzo, no outro extremo, dizendo: “Olhe lá, onde seu bisavô italiano trabalhava”. Sempre me conta que meu avô também trabalhou para os Matarazzo, fazendo entregas de macarrão. Durante a Segunda Guerra, quando a gasolina escasseou, ele carregava a mercadoria numa charrete.

Já sei que quando chegarmos ao final do viaduto, mamãe vai me mostrar mais uma vez a Casa Michelângelo, de artigos de desenho, onde papai começou a trabalhar, aos doze anos, fazendo serviços gerais. Sei de cor tudo o que vai acontecer. Vamos entrar na Igreja de Santo Antonio, na Patriarca, fazer uma breve oração e deixar uma esmola para os pobres. Depois, atravessar a praça e dar uma olhada na Sloper, loja elegante de “artigos para senhoras”. Como não está muito calor, desta vez não iremos disputar um copo gigante de caju gelado no balcão da Casa dos Sucos.

Iremos direto ao ponto inicial do Turiassu, que nos levará para casa trepidando nos paralelepípedos. Chegarei sonolenta e enjoada da viagem no ônibus cheio e mal ventilado. Mamãe, com o embrulho de doces comprados na Dulca da Vieira de Carvalho e eu, com a partitura de piano da Casa Manon enrolada num papel.

Compramos sempre muito pouco, ou mesmo nada, nessas idas à cidade. Aprendi com minha mãe: nosso passeio, mais que tudo, é um modo de nos sentirmos parte da metrópole, um jeito de tomarmos posse do nosso lugar.

Concha Celestino
Janeiro/2010
Projeto Escrevivendo - Crônicas



Ônibus 577T



Ele aponta lá na curva do Hospital das Clínicas, na sombra das árvores – vem do Jardim Miriam... deixa para trás a arte fixada em muros, toma a Domingos de Morais, passa pelo colégio dos maristas, atravessa o paraíso todo azul e branco, e vem pelo espigão de torres. Ao vê-lo, meu coração bate com força: lá vamos nós! Desce a Rebouças mais depressa, acelerado pelo corredor. São poucas as paradas: os engravatados e as moças de microfibra e bico fino-salto alto descem na Faria Lima, as sacolas vazias e os adolescentes saltam felizes no ponto do Eldorado, as mochilas e as tatuagens ficam no Butantã.

Até os anos 80, o ponto final do 577T era na base do Morro do Querosene, que antes marcava com sua luz o horizonte da cidade; ficava ali, na Avenida Caxingui, por cima do Córrego Pirajussara, que passa escondido, em meio a terrenos ainda desocupados. Com os anos, a terra da Paineira virou asfalto, fecharam os poços, cresceram prédios e a parada deslocou-se para mais adiante... a cidade se estica em direção ao oeste. Hoje a linha faz a volta na Praça Elis Regina, na Vila Gomes, ao lado do conjunto habitacional que marcou, um dia, a última presença do Estado na periferia depois da ponte do Rio Pinheiros.

No ônibus todo dia, ele faz parte da minha vida: Vila Gomes-Jardim Miriam, sempre azul e branco. Existem outras alternativas, mas eu os considero como concorrentes: o Rio Pequeno/ Parque Continental-Anhangabaú e o Jardim Maria Luiza-Largo da Pólvora, todos versões modernas do Bonde Camarão, de um abóbora festivo. Logo o metrô vai sair da Luz e chegar na Vila Sônia - tudo mais rápido, seguro e condicionado atrás das colunas vermelhas e da estrutura prateada da Estação Butantã.

Na vida sempre temos preferências... são as facetas do coração e da razão... mais de 25 anos, para lá e para cá. Outro dia, de repente, pensei: se o 577T faz parte da minha vida, poderia também me levar na morte, todo azul e branco? Na vida também temos fantasias: as coisas significativas, as representações, cerimônias arranjadas. Já me disseram que no meu caixão colocariam giz, clipes, papel e borracha, o Guia da Folha e a carteirinha do SESC... porque não o bilhete único e o ônibus para o cortejo? Depois lembrei: o Jardim Miriam-Vila Gomes não passa na Vila Alpina... pena!

Ainda pensei: um ônibus pode ser alugado... levaria o corpo e os poucos íntimos... o cachorro também... seria uma ocasião especial e perfeitamente justificável, ele iria limpo e brilhante... mas não, não seria realmente o 577T... pena!

Então, depois, talvez, para as cinzas? Esta é uma encomenda delicada, feita a um grande amigo-amor, e a lista é extensa: por favor, eu poderia ficar em alguma tinta de muro no Jardim Miriam; na Casa Modernista, embaixo da figueira, ao lado da piscina; perto de uma escultura no Lasar Segall; dividida em muitos punhados pela Paulista; no jardim da Faculdade de Medicina, de tantos encantos e desencantos; o coração na parada da Oscar Freire; também em montinhos pela USP; entre as cobras do Butantã; junto com a Elis e ... não esquecer, em todos os ônibus da linha Vila Gomes-Jardim Miriam. Aonde? ...perto do banco alto.

Ana Silvia Whitaker Dalmaso



Crônica sobre a Praça Oswaldo Cruz

Cadê o índio pescando debaixo do salgueiro-chorão? Cadê a Sears, cadê o cheiro de castanha de caju, o snack bar com salsichas virando em cima de uma grelha rolante, cadê as roupas arrumadas em araras na primeira loja de departamentos que conheci?

Eu deveria ter uns dez anos de idade. De vez em quando, subia a Rua Sampaio Viana até a Rua Cubatão, virava na Rafael de Barros passando pela sorveteria Alaska - dos sorvetes de creme nas noites de verão – e atravessava a Praça Oswaldo Cruz. Os motoristas sabiam dirigir, os pedestres sabiam andar pelas ruas e as pessoas eram felizes respeitando umas às outras. Minha mãe deixava, não tinha perigo. Os carros não iriam me esmagar, as pessoas aprendiam, na auto-escola, a tomar cuidado com as crianças, nenhum pivete iria me atacar com um canivete para roubar meus tênis. A gente não usava tênis.

A estátua do índio era o ponto de referência para qualquer encontro com as amigas. O banco de madeira e ferro, debaixo da sombra de uma árvore de verdade, era o meu lugar preferido. Hoje, tudo mudou de lugar: o índio foi parar do outro lado, entre uma guia e outra e sem nenhum destaque, custei para achá-lo. Tanto espremeram, retalharam, enfiaram grades e passarelas que eu preciso me preparar psicologicamente antes de atravessar a praça. Como se afunilar, encurralar e empurrar pessoas as fizesse mais disciplinadas. Tudo por uma cidade melhor? Não. Tudo para controlar a selvageria inerente ao ser humano que se manifesta, embora reprimida, na cidade super populada.


[Índio Pescador- estátua em bronze do escultor brasileiro Francisco Leopoldo e Silva*]
*Francisco Leopoldo e Silva (1879- 1948) Discípulo de Amadeo Zani, estudou em Roma com o grande escultor Arturo Dazzi. Ao contrário de Brecheret, (com quem estudou em Paris no ateliê de Arturo Dazzi), que adotara estilística moderna. Leopoldo e Silva, que inicialmente seguira o estilo e a técnica de Rodin - daí o vigor de suas esculturas, chegando ao Brasil quedou-se numa manifestação mais conservadora, embora com um acentuado lirismo. Assinava L. Silva.

Sandra Schamas

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