sábado, 6 de fevereiro de 2010

Algumas crônicas lidas na oficina

14.05.09

Perdizes

por Antonio Prata, Seção: Crônica do Metrópole 01:05:13.


Vez ou outra, indo devolver um filme na locadora ou almoçar no árabe da rua de baixo, dobro uma esquina e tomo um susto. Ué, cadê o quarteirão que estava aqui?! Onde na véspera havia casinhas geminadas, roseiras cuidadas por velhotas e janelas de adolescentes, cheias de adesivos, jaz apenas uma imensa cratera, cercada por tapumes.


Fecho os olhos, abro de novo, penso se não seria o flashback de um ácido tomado nos anos sessenta, lembro-me então que eu não existia nos anos sessenta e, portanto, aquilo é exatamente o que parece: uma imensa cratera, cercada por tapumes. As janelas, as roseiras, as casinhas, tudo foi levado, em caçambas de entulho – as velhotas e os adolescentes, espero, conseguiram escapar.


Em breve, brotará do buraco um prédio, com grandes garagens e minúsculas varandas, e será batizado de Arizona Hills, ou Maison Lacroix, ou Playa de Marbella, e isso me entristece, não só porque ficará mais feio meu caminho até a locadora, ou até o árabe na rua de baixo, mas porque é meu bairro que morre, devagarinho.


Os bairros, como os homens, também têm um espírito. É uma espécie de chorume transcendental que escorre pelo meio fio, soma de suas construções e seus personagens, sua história e sua paisagem. Perdizes é o bairro da PUC e de palmeirenses que gritam pela janela, a cada gol, ensandecidos, dos poetas concretos e de deliverys que vendem pizzas de mozzarela, cada vez mais barato, a cada ano que passa, é o bairro do Tuca e do Tom Zé -- que, dizem, é o jardineiro do prédio em que mora.


Da mesa do árabe em que almoço, vejo estudantes de moda do Santa Marcelina, de cabelo azul, esperando para atravessar a rua, ao lado de freirinhas, que cursam pós em teologia na PUC, vejo meninos e meninas de uniforme escolar mascando chicletes, ouvindo I-pod e provocando uns aos outros, daquele jeito que meninos e meninas se provocam, um segundo antes de nascerem peitos e barba. Vejo um cara que vende cocada, vindo diretamente do século XIX, batendo a sua matraca. No ponto da Cardoso tem o Adão, taxista que conhece não só todas as árvores frutíferas da cidade como ainda sabe em que época cada uma delas dá seus frutos.


Às vezes, no fim da tarde, quando ouço o sino da igreja da Wanderley badalar seis vezes, quase acredito que estou numa cidade do interior. Aí saio para devolver os vídeos, olho pro lado, percebo que o quarteirão desapareceu e lembro-me que estou em São Paulo , e que eu mesmo tenho minha cota de responsabilidade: moro no segundo andar de um prédio. É um prédio velho, tem o simpático nome de Maria Alice, mas e daí? Ali embaixo, onde agora fica a garagem, já foi cratera, e antes dela o jardim de uma velhota e a janela de um adolescente, cheia de adesivos.




23.12.08

Central park

por Antonio Prata, Seção: Geral 03:03:04.




Para nossa sorte, o Museu da Língua Portuguesa não aceitava cartão nem cheque e o caixa automático mais perto ficava do outro lado do Parque da Luz. Quando digo sorte, não ponho nem uma gota de ironia.


Pertenço à primeira geração privatizada do Brasil. Na infância, ainda aproveitei aquele antigo espaço público chamado rua. Cresci numa vila, gritando um-dois-três-Antonio-salvo embaixo de goiabeiras e chapéus de sol, desenterrando moedas do vão entre os paralelepípedos, com interesse arqueológico e acreditando que o mundo era um lugar assim, por onde a gente podia correr, gritar e cavucar sem maiores problemas.


Quando cheguei à adolescência, contudo, a violência - ou o medo da violência, que não deixa de ser, também, uma violência – já havia transformado a rua em mera passagem entre um lugar e outro. Adolesci em casas, escolas, shoppings, restaurantes, cinemas e outras instituições intra-muros, num pedaço da cidade que raramente excedia os limites da Zona Oeste. De modo que, aos 30 anos, vergonhosamente, não conhecia o Parque da Luz.


No portão, uma senhora vendia maçãs do amor, ao lado de dois repentistas cantando uma embolada. Um boliviano de calça camuflada, chapéu de cowboy e barrigão para fora da camisa passou por nós fumando um charuto e cantando um rap em castelhano. Lá dentro, crianças brincavam no tanque de areia e corriam entre enormes esculturas de metal. A dois metros do tanquinho, senhoras de programa exibiam um despudor cheio de pudores – um discreto exagero no batom e nos decotes insinuava que não estavam ali a passeio.


Tímidos, garotos e garotas exalando hormônios e desodorante faziam o footing na alameda central, como antigamente, com uma ingenuidade que combinava com o chafariz e os bancos de madeira, mas não com a cidade em torno das grades de ferro. Por toda parte, imigrantes falavam castelhano e pensei que já era hora de parar de comemorar a chegada dos japoneses e começar a entender a entrada dos bolivianos.


Tiramos dinheiro do outro lado do parque e refizemos o mesmo caminho, reparando nas esculturas, nos chapéus de cowboy, nos decotes e sotaques tão distintos que, reunidos pela curadoria do acaso, faziam daquele quadrilátero verde uma província cosmopolita, avesso de São Paulo e, ao mesmo tempo, a sua cara. Pagamos o museu com uma nota de cinqüenta. Uma pena que o moço tivesse troco.

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